Capacitismo

Capacitismo: pouco ouvi, não vivi, só escuto falar.


Eu não sou uma pessoa com deficiência, porém ao longo dos últimos 30 anos convivo e trabalho com pessoas com deficiência.

Escolhi trabalhar com esse público, como psicólogo e venho atuando em centros de habilitação e reabilitação, junto a pessoas com deficiência física, deficiência intelectual e nos últimos anos, pessoas com deficiência visual.

Mais especificamente nos últimos 12 anos, assumi a coordenação técnica de uma área de reabilitação/ inclusão profissional e empregabilidade, o que me colocou de vez no ecossistema empresas – pessoas com deficiência, acessibilidades, e logicamente muito próximo a profissionais que atuam em RECURSOS HUMANOS.

Dessas inúmeras experiências, quero destacar uma história. Fomos procurado por uma empresa que queria “turbinar” (palavra da diretora de RH) o Programa de D&I e contratar profissionais com deficiência,  e com isso matar “dois coelhos com uma cajadada só” (palavras da diretora), ou seja, ter mais pessoas com deficiência trabalhando para turbinar o tal Programa de D&I, e com isso cumprir a Lei de Cotas para pessoas com deficiência, pois, pelo que percebi, a multa estava batendo a porta.

“Dois coelhos com uma cajadada só” – um ditado popular que na prática quer dizer algo mais ou menos assim – conseguir dois (ou mais) resultados ao mesmo tempo ou com a mesma ação.

Pensei, mas não falei: que desafio !! como será que a empresa, mas especificamente a área de Recursos Humanos está estruturada para dar as tais cajadadas!

Depois de ouvir a situação / demanda da empresa, fiz minha primeira pergunta:  “Como a profissional, diretora de RH, percebia a cultura da empresa no que tange a D&I”  e emendei com a complementação sobre a contratação dos profissionais com deficiência…”e no que tange as pessoas com deficiência, como percebia o clima da empresa para essas contratações e como era o CAPACITISMO no que contexto da empresa”.

Não sei de onde vem esse ditado popular, mas a reação de minha futura cliente, foi literalmente ficar com “cara de paisagem” frente à minha pergunta.  A resposta dela, foi com outra pergunta: “Capacitismo, qual o significado mesmo ? Já ouvi isso, já escutei falar, mas preciso compreender melhor” …bem, a resposta-pergunta já me disse tudo!

Tudo bem…vamos lá…ninguém é obrigado a saber exatamente  o que é capacitismo ( o que eu particularmente acho um absurdo, sendo a profissional diretora de RH da empresa),  afinal de contas, apropriar-se deste conceito e suas vicissitudes é uma “competência” técnica fundamental para dar as tais cajadadas  – com qualidade e sucesso, diga-se de passagem.

Capacitismo é um termo relativamente recente, mas suas origens e sistema estrutural remontam a tempos imemoriais. De forma geral, o capacitismo revela o preconceito social e discriminação junto as pessoas com deficiência, pois sua lógica e seus vieses, decorrem sempre em considerar o profissional com deficiência como incapaz de realizar tarefas, performar. O capacitimo alimenta mitos sobre deficiência, e na prática representa grandes entraves para inclusão profissional, se não um dos principais.

Sabe aquelas frases: não contrato profissional cego porque ele não conseguirá executar tal tarefa… ou ainda, o profissional surdo não vai compreender ninguém aqui na empresa…e muitas outras frases que comumente ouvimos no trabalho com Diversidade e Inclusão. 

Precisamos urgentemente descontruir esses discursos pois além de violentos e segregadores, nada dizem sobre profissionais com deficiência. A desconstrução acontece por meio de intervenções na cultura da empresa, processos de letramento, ampliação de oportunidades de profissionais com deficiência, conhecimento profundo sobre acessibilidade entre outros temas.

Por isso acredito que diversidade e inclusão são valores humanos e são skills fundamentais para profissionais de recursos humanos. É fundamental que área de Recursos Humanos,  e toda a empresa conheça e aprenda sobre deficiência, acessibilidades, cultura inclusiva, estratégias de inclusão profissional, tecnologias assitivas.

Muita coisa vem mudando no que diz respeito a inclusão profissional de pessoas com deficiência e profissionais de Recursos Humanos precisam ter essas informações em seu radar.

Como mencionei no início deste artigo, o longo desses 30 anos, vi o Brasil aprovar e colocar em prática a Lei de Cotas para pessoas com deficiência em 1991, criar dispositivos legais com a Lei de acessibilidade em 2004, incorporar a sua constituição federal a Convenção de Direitos da pessoa com deficiência da ONU em 2006/2007 (documento esse que ratificou e  gerou diversas mudanças no conceito de deficiência, localizando no ambiente a deficiência e não em uma pessoa), elaborar e colocar em prática uma das mais avançadas  legislações sobre diversidade e inclusão, a LBI – Lei Brasileira de Inclusão, e presenciar o aumento expressivo de contratação de profissionais com deficiência[1].

Fora as mudanças legais, sociais e culturais descritas acima, do ponto de vista técnico, evoluções e evidências nas áreas de psicologia social, neurociências, administração entre outras, nos mostram a importância da diversidade e das RELAÇÕES HUMANAS dentro de uma companhia e o desafio em lidar com as interseccionalidades, as diferenças e os processos de inclusão.

E para finalizar, você deve estar se perguntando…o que aconteceu com a diretora de Recursos humanos a e empresa que falamos também no início desse texto? Pois bem, todo o planejamento para o Programa de Diversidade e Inclusão foi redimensionado o que incluiu maior investimento para implementar uma cultura mais inclusiva, capacitar times e liderança, realizar estudos de acessibilidade nos processos entre outros…e o começo foi mirando na identificação, minimização e eliminação de ideias, atitudes e estruturas CAPACITISTAS presentes na empresa.

Tenho certeza que todas as pessoas da empresa além de terem ouvido sobre capacitismo, puderam promover uma cultura mais diversa, inclusiva e empática.

Ahhh…e o encontro com a empresa aconteceu em 2021…Nunca é tarde para começar, mas vamos acertar as cajadadas.

Autor:

Edson Luiz Defendi
Psicólogo e professor, Doutor em Psicologia Clínica
Especialista em diversidade e Inclusão.


[1] Dados referentes a fevereiro de 2021, mostram uma reserva de 774.695 vagas de trabalho disponíveis com 418.138 pessoas com deficiência contratadas.

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