Como membros do Squad de Compliance e Boa Práticas do HUBRH+AAPSA estamos sempre analisando o comportamento das corporações, discutindo as boas práticas das lideranças em geral, pois cada vez mais os gestores de pessoas se espalham nas empresas, criando metodologias e fluxos de trabalho, gerenciando, de acordo com suas próprias regras, convicções e personalidades.
Neste cenário de tantas nuances, as empresas precisam do suporte dos profissionais de Recursos Humanos em questões corriqueiras do dia a dia, mas também em situações muito delicadas, que nascem do relacionamento entre os colaboradores, que impactam a vida do trabalhador não só no ambiente de trabalho como fora dele, já que a relação de trabalho é, antes de tudo, uma relação humana, de pessoas convivendo, partilhando espaços, ideias e modos de interagir.
Lidar com pessoas difíceis, empreender mudanças culturais, acomodar as diferenças e necessidades pelo conflito de gerações, transacionar entre a gestão do comando e controle tradicional para o diálogo e portas abertas são grandes desafios. E nesse universo desafiador, a adoção de práticas para coibir condutas inapropriadas de toda e qualquer natureza, buscando a proteção dos direitos de natureza extrapatrimonial do trabalhador, precisa ser uma prioridade na cultura corporativa.
Entre estas ações reprováveis, nos deparamos, além do assédio moral, que já é totalmente inaceitável, pois o empregado deve ter sua dignidade de pessoa humana preservada, também a prática de assédio sexual, cujo enfrentamento não é novo, pois as relações de hierarquia são inerentes à vida corporativa. Situação gravíssima, que vem requerendo cada vez mais atenção por se tratar de conduta ainda mais reprovável e inadmissível, que demanda medidas preventivas e disciplinares enérgicas.
Para enfrentar esse problema, dentre outros, um dos maiores pilares do compliance no meio empresarial é o chamado tone at the top (ou tone from the top) para os programas de integridade, de gerenciamento de riscos ou de segurança da informação. A ideia é ir além das políticas e procedimentos formais, que são extremamente importantes, diga-se de passagem, mas cuja importância pode ser relativizada se o exemplo não vier de cima.
De fato, o grande aprendizado da questão que vamos abordar nesse texto é como lidar com os casos em que a virtude não vem do topo? O que fazer quando a prática da conduta inaceitável, como o assédio, vem do topo? O que poderia ser feito pela instituição, seus organismos de governança, as estruturas de compliance e RH em um episódio de acusação de assédio moral e sexual tão marcante como o ocorrido, por exemplo, com o ex-presidente da Caixa Econômica Federal, amplamente noticiado e que nos traz essa reflexão?
Certamente os fatos descritos na imprensa são graves e merecem a apuração interna e criminal inclusive, tendo em vista que o assédio sexual é crime, aliás foi incorporado ao nosso Código Penal pela Lei 10.224 de 15/05/2001, já ultrapassando mais de 20 anos de existência. Lamentavelmente, mesmo após esse longo período desde a promulgação da lei que procurou coibir essa conduta, a sensação que ainda temos é que o tema é tratado como um mero desvio de conduta funcional na maior parte dos casos, ensejando a penalização financeira do empregador pela conduta do agressor preposto, mas sem maiores desdobramentos à pessoa física do ofensor, que além de atuar em má conduta profissional, que lhe enseja a penalidade máxima aplicável, ou seja, a dispensa por justa causa, se constitui, de fato, como criminoso.
Justamente pelos efeitos nocivos, que ultrapassam a dilapidação extrapatrimonial da figura do trabalhador, as consequências nefastas decorrentes dessa prática atingem a pessoa física do ofendido no âmbito íntimo e pessoal. Não foi por outra razão que a prática foi tipificada criminalmente, pois os impactos socioprofissionais para o assediado podem desencadear depressões, baixa autoestima, prejuízo na carreira profissional e até o suicídio.
Em relação ao compromisso da alta gestão, a própria norma DSC 10.000 (Diretrizes para o Sistema de Compliance) dispõe que a “cultura do compliance deve permear a organização através do exemplo de seus dirigentes e atingir todos os níveis hierárquicos por meio de atitude e ações da chefia“. Vale lembrar, que esse engajamento da alta administração não se resume as manifestações de apoio ao programa de integridade, requerendo medidas concretas para fornecer os meios e recursos (humanos, materiais e financeiros) necessários para que os programas sejam implementados de maneira efetiva.
Entretanto, o tone at the top pode ser insuficiente para dar o tom necessário ao programa de integridade em muitos casos, pois como disse Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. Assim, a estrutura de governança, apoiada pelos departamentos que cuidam das pessoas, como compliance e RH, deveriam ser capazes de proteger as pessoas de um topo tóxico. O que falhou então no caso da Caixa?
Obviamente que o comprometimento da alta administração é fundamental para se desenvolver uma cultura organizacional que valorize a conformidade e a integridade. Mas o RH é a liga e o termômetro que permite que essa realidade seja vivida e praticada internamente, com empregados e estagiários, e externamente, com clientes e prestadores de serviço.
Muito se fala no papel dos RHs no engajamento e são diversas as ferramentas e métodos desenvolvidos para medir esses parâmetros, os quais devem ser ostensivamente publicizados, por meio de manifestações orais e escritas, formais e informais. Nesse sentido, com certeza os profissionais de RH da Caixa já deviam ter conhecimento do ocorrido, pois os relatos são inúmeros, inclusive de fugas nos corredores das mulheres ao som de aproximação do algoz. Mas como enfrentar a situação?
Sabemos que essa não é uma tarefa fácil, ainda mais considerando o cenário político de nomeações dos altos executivos e conselheiros das empresas estatais no Brasil, como a Caixa Econômica Federal. Mas não podemos nos conformar com essas dificuldades, temos que sair mais fortes desse episódio, aprender com ele e incrementar as nossas estruturas de governança e compliance.
É claro que é importante a empresa instituir um código de conduta e criar mecanismos de denúncia anônima, delegando a alguém a responsabilidade de tomar medidas no âmbito da relação de trabalho e das autoridades competentes, com anuência da vítima e deve orientar a toda população de empregados, gestores e subordinados, sobre os conceitos e consequências destas ações. É dever do empregador, e não faculdade, garantir aos seus trabalhadores um ambiente de trabalho seguro e saudável, se entendendo aqui segurança e saúde nos aspectos físico, mental e social.
Entretanto, como dizem, o diabo mora nos detalhes e nem sempre essas medidas serão suficientes, também será necessário averiguar o organograma da empresa e desenhar um canal de denúncia que seja capaz de investigar o CEO ou presidente, os quais também respondem ao conselho, por exemplo. Além disso, o RH precisa ser colocado em um papel estratégico para lidar com as questões enfrentadas pelos trabalhadores na posição subordinados/hipersufientes, vivenciadas no ambiente de trabalho em razão da execução do contrato de emprego, mas que excedem o status de trabalhador, com conexão mais ampla aos diferentes stakeholders, como o Comitê de Pessoas do Conselho, por exemplo, que teria alçada para lidar com uma situação dessas.
Também a preservação do sigilo de identidade dos profissionais que estão lidando com a própria denúncia é fundamental, pois sabemos que a corda sempre estoura do lado mais fraco, e a estrutura deve ser capaz de proteger os profissionais que estiverem gerindo a crise, bem como o próprio trabalhador ofendido, que deve ter sua intimidade e privacidade preservados.
Fato é que o episódio nos ensina que não podemos partir apenas da premissa de que a virtude está no topo e que a preocupação em criar métodos de investigação de condutas e aplicação de penalidades não necessita abranger toda a estrutura. Precisamos criar mecanismos de pesos e contrapesos, envolvendo diferentes stakeholders com forças similares, que possam proteger as empresas dos seus próprios maus executivos.
Obviamente que enfrentar a alta hierarquia tóxica e avessa à conduta que se espera de um líder capacitado, honesto e bem intencionado é um dos maiores desafios para manter a integridade das empresas. Ainda que algumas instituições tenham que enfrentar esta situação desafiadora, atualmente as organizações entendem sua função social e tem a preocupação de fazer a diferença de forma positiva como agente integrante da vida em comunidade, do meio ambiente e de sua posição no mercado que as faz maiores do que alguns líderes, que se utilizam de sua posição para impor posturas negativas e por vezes opressoras aos seus liderados.
A queda do presidente da Caixa Econômica Federal, por conta das acusações de assédio sexual, nos deixa importantes lições para prevenir a ocorrência de violência laboral pelo assédio moral-sexual. A empresa deve ser diligente e estruturar métodos para orientar, investigar e se o caso, punir líderes e liderados, independentemente da nomenclatura do cargo.
O enfrentamento do problema deve abranger várias frentes, começando com o acolhimento e a recuperação da saúde física e mental da vítima. A partir daí, seguir a sistematização e a coleta das provas, bem como a análise e tentativa de aferição do tipo de violência laboral (se assédio moral ou se configurado o crime de assédio sexual) para tomadas de medidas sob o aspecto institucional (aplicação das penalidades e providências cabíveis de acordo com a gravidade da conduta) e, se for o caso, extra institucional.
SOBRE OS AUTORES:
Hélio Moraes é VP de Compliance e Boas Práticas do HUBRH+AAPSA, sócio de compliance e proteção de dados no PK Advogados.
Vanessa Ziggiati é Embaixadora do Squad de Compliance e Boas Práticas do HUBRH+AAPSA e sócia da área trabalhista no PK Advogados.